A mãe de Trancoso
Pessoas que acreditam que mais importante do que doutrinar,
Impressionou-me o olhar ausente e triste que ressumava daqueles belos olhos azuis tão transparentes. Aquela mulher de aparência humilde aguardava, a dois passos de mim, no meio de centenas de pessoas, que fosse aberta a porta do auditório onde ia decorrer a cerimónia do Juramento de Hipócrates para os recém-licenciados em Medicina. Olhou distraidamente para mim. Esboçei um sorriso e ela baixou os olhos! Sem desviar o olhar, continuei a sorrir e atrevi-me a atirar-lhe a pergunta:
«— Está triste?… Olhe que hoje é um dia de festa!».
Deduzi que fosse mãe de algum dos jovens. A senhora olha para mim admirada e hesitante sem conseguir responder imediatamente. Ao mesmo tempo que as lágrimas lhe começam a cair copiosamente, desfia-me ali toda a sua vida numa catadupa de frases curtas. Era a mais velha que ia hoje fazer o Juramento de Hipócrates. A mais nova também estudava Medicina. O rapaz estava a acabar Engenharia. Ela estava na verdade muito triste, por o marido não estar ali. Não chegara a ter a felicidade de ver qualquer dos filhos formados. Dissera-lhe, antes de falecer, que vendesse tudo o que fosse necessário para lhes dar um curso superior. Para ele, isso era o mais importante. Foi para isso que ambos tinham trabalhado a vida inteira. Casara com ele aos 18 anos para fugir a um pai muito severo. Até podia ter feito a maior asneira da vida dela. Mas não, o pai dos seus filhos era um homem bom e trabalhador! Um dia dissera-lhe que tinha comprado um terreno isolado em Trancoso para construir uma casa. Mal ele sabia que aquela casa tão grande era agora o túmulo dela, onde vivia sozinha com os cães.
«— Trancoso, conhece? A terra do Bandarra, o das profecias! Já ouviu falar? Por vezes o nevoeiro é tão cerrado de manhã que se diz que vai aparecer o D. Sebastião…».
Os olhos azuis claros continuavam marejados de lágrimas.
«— Como o meu marido gostaria de estar aqui hoje a assistir à festa da filha médica…».
«— Mas quem é que lhe disse quem não está?», atirei sem hesitar. «— Tenho a certeza de que está aqui hoje consigo e com os seus filhos a assistir com muita felicidade a esta festa tão especial!».
Aquela mulher humilde de Trancoso pára de respirar por momentos e crava os olhos estupefactos e interrogativos nos meus.
«— Quem me dera acreditar nisso, mas não tenho essa fé…».
«—Não tenha a mínima dúvida!», respondi-lhe assertivamente com um sorriso rasgado. «— Tenho a certeza absoluta de que ele está aqui convosco a assistir ao Juramento de Hipócrates da vossa filha! Ou a senhora acha que foi por acaso que nos cruzámos agora aqui e que meti conversa consigo, para lhe dizer exactamente isto? O acaso não existe! Não acredito em coincidências!».
Aquela mãe tão simples quanto sábia parara de chorar e olhava-me atónita do fundo daqueles olhos azuis tristes e cansados.
«— Como eu gostava de acreditar nisso, minha senhora…», murmura.
«— Acredite! Tenho a certeza absoluta de que o seu marido está aqui hoje ao vosso lado muito orgulhoso e muito feliz!». Ela esboçou um sorriso triste. O diálogo foi interrompido com a chegada da filha, uma jovem bonita e bem vestida, visivelmente incomodada por a mãe estar a falar com uma estranha, aparentemente de um mundo tão diferente.
«— Não fui eu que comecei a conversa, foi esta senhora…», apressa-se a justificar. Virando-se para mim, diz baixinho:
«— Sabe, a minha filha não gosta que eu meta conversa, mas eu gosto de falar com as pessoas…».
O diálogo foi interrompido com a abertura das portas do auditório do Hospitais da Universidade de Coimbra. Os jovens médicos e as suas famílias a apressaram-se na mira de arranjarem lugares sentados.
No final da cerimónia, estava eu no átrio a olhar com desvelo de mãe para o meu filho, que posava juntamente com os outros jovens diplomados para a tradicional fotografia na escadaria que dá acesso ao auditório, e sinto alguém a tocar-me de mansinho nas costas. Era a mãe de Trancoso. Os seus olhos azuis, agora ainda mais brilhantes, espelhavam a felicidade que lhe ia na alma.
«— Desculpe, minha senhora, queria apenas agradecer-lhe as suas palavras. Não imagina o que significaram para mim e o bem que me fizeram. Muito obrigada!». E abraça-me efusivamente.
Este episódio, que nunca esquecerei, não é ficção! Foi integralmente testemunhado pela minha amiga Ana Feijão, uma outra mulher, entre as muitas que ontem encheram aquele auditório com o carinho, a alegria e a esperança que transbordavam dos seus corações de mães.
Ana Maria Ramalheira
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